Documentário “Nunca me sonharam” e Adolescência

Quem sonha a juventude?

Rafaela Rita de Oliveira
4 min readOct 27, 2022

O documentário de 2016 focaliza o cenário do ensino público brasileiro, em escolas paraenses. Durante a reportagem, colheram-se relatos de vários estudantes do Ensino Médio, professores e especialistas de diversas áreas para colaborarem e constituírem a obra.

“Com 15 anos tu quer ser advogado. Com 16 tu quer viajar o mundo. Tu muda de pensamento muito rápido. Muda de gosto musical muito rápido. Vai se apropriando de certas coisas, e vai mudando, evoluindo.” — Maria Lúcia Mattos, 16 — Belém, PA.

Esse breve relato pode servir como base para descrevermos a essência da adolescência, aquela sobre a qual teóricos da área dedicaram-se a estudar e se aprofundarem: A busca da identidade. A principal tarefa dos jovens é confrontar a crise de identidade (Erikson, 1968), de modo a tornar-se um adulto singular, com uma percepção concisa de si próprio e um papel valorizado na sociedade. Da mesma forma, Knobel e Aberastury (2003) argumentam que a “Síndrome Normal da Adolescência” é primoridalmente composta pela procura de si mesmo.

Nesse sentido, o caminho pelo qual os adolescentes percorrem para chegar à sua identidade perpassa por identificação em grupos: Grupos de amigos, grupos religiosos, políticos; Possibilidades de carreira, gostos musicais, identidade sexual; Todas essas questões fazem parte dessa fase do desenvolvimento humano e cada ser, em sua individualidade, experimenta a adolescência e suas crises de modo único.

(Começando por aí, apenas duas bases teóricas podem ser suficientes para enfraquecer a ignorância de frases como “esses jovens de hoje em dia não querem nada”) Não querem ou não podem?

“É difícil né? 18 anos, tentando terminar. Correndo atrás de emprego, e sendo que eles pedem currículo adoidado, assim, e a gente não sabe o que oferecer. Aí a gente tem que correr atrás de cursinho e dinheiro, que falta. Então é meio difícil, assim, dizer o que a gente vai ser.” — Alison Ribeiro, 18 — Santarém, PA.

Quando os jovens têm problemas para fixarem-se em uma identidade, nesse caso, uma identidade ocupacional, ou quando suas oportunidades são limitadas, podem apresentar comportamentos com consequências negativas, como atividades criminosas e afins (Erikson, 1968).

Quando você enfatiza relatos de jovens menos assistidos socialmente e ao mesmo tempo conflituando com uma fase da vida repleta de sonhos e objetivos, tem-se um cenário tristemente prejudicial. Há o que podemos chamar de “adultização” da adolescência, onde os jovens precisam conciliar o trabalho (que muitas vezes vêm desde cedo e encontra-se também precário), para o sustento da família. Ou, da mesma forma, tráfico e demais atividades criminosas também passam a ser atraentes. “Glamour, status, IDENTIDADE, poder, prestígio”.

Meus sonhos se esvaem sem educação

“Essa compressão da adolescência e da infância, ela produz o que me parece ser a principal sequela psicológica que é o encurtamento dos sonhos. Isso é pior do que oferecer oportunidades não equitativas, isso é matar o futuro.” — Christian Dunker, psicanalista

Segundo a Unicef, 5 milhões de crianças e adolescentes em todo o país se encontram fora das escolas (Jan/2022). Além do mais, o movimento Todos Pela Educação prevê que, em 2022, apenas 76,9% concluirão o Ensino Fundamental e 65,1% se formarão no Ensino Médio com até um ano de atraso. Situação essa que se agravou pela enorme ferida deixada pelo ensino online (pra alguns) e pela já sucateada e negligenciada educação no Brasil, onde as escolas públicas não recebem investimento suficiente as vezes nem para infraestrutura básica. Em “Nunca me sonharam”, houve relatos de alunos e professores que se uniram para pintar as paredes da escola.

Abraçar a pior das juventudes

Tem que pegar aquela galera que é a pior da escola. Rendimento baixíssimo, disciplina zero, agressividade, bombas no banheiro. Eu quero esses 17 moleques comigo. Perguntei “Vocês gostam de futebol?”. Coloquei eles pra ser a equipe da escola” . Hoje eles me ajudam com tudo . — André Luis Barroso, C.E. Prof José de Souza Marques — RJ

Culturalmente, faz parte do “jeitinho brasileiro” encobrir as principais mazelas sociais, da mesma forma que desde sempre, aos jovens, especialmente os menos favorecidos, lhes são rotuladas suas essências como “rebeldia”, ou sua mania de questionar aquilo que lhe foi imposto como “só uma fase”.

Há uma postura a ser adotada com o jovem “delinquente” que coloca bombas em banheiros ou fuma maconha. Educadores ou quaisquer outros profissionais que lidem com gente ou com escolas: Ouçam o jovem delinquente, pergunta sobre a família, sobre o que ele gosta, sobre o que ele sonha em ser. Pergunta há quantos dias ele teve oportunidade de experimentar o lazer ou se expressar. Façam isso com todos os delinquentes e trombadinhas que vocês conhecem. O resultado pode ser quase mágico.

O documentário ainda aborda gravidez na adolescência, abandono parental, questiona os conteúdos escolares e outros assuntos que merecem uma importância maior do que cabe nesse texto.

Uma juventude que critica e contesta, e na mesma medida é silenciada, forma a geração de adultos conformados e machucados que elegem uns caras bem monstruosos pra presidência.

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https://dol.com.br/noticias/para/690435/desafio-da-educacao-em-2022-e-combater-a-evasao-escolar?d=1

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